Tirem as Mãos do Camarada Mariátegui –  Sobre a Terminologia Heterodoxa e Religiosa na Obra de Jose Carlos Mariátegui 

Por ‘’Limaxe’’ — G.E.V.P.

Mariátegui é uma figura de grande valor histórico, responsável pela chefia do Partido Comunista do Peru, colocando este no luminoso caminho do marxismo-leninismo, que seria posteriormente resgatado pelo Presidente Gonzalo. Reconstituir o partido aos rumos do marxismo-leninismo e o elevar ao maoismo foi uma tarefa que só podia ser cumprida jogando no lixo todo o recente legado revisionista que tomou de assalto o PCP, retomando o luminoso caminho de Mariátegui.

Este não foi apenas um homem de ação, mas foi também um exímio teórico, trazendo grandes contribuições ao tesouro do socialismo científico. Suas análises acerca dos eventos mundiais, da ascensão do fascismo, críticas literárias e muitos outros temas que este trabalhou são de enorme brilhantismo.

Porém em vários de seus textos se encontra uso de termos estranhos ao conjunto geral das obras clássicas do marxismo. Esses termos podem ser facilmente mal entendidos ou retirados de seu contexto para defender posições revisionistas. Não é difícil ver oportunistas reivindicando Mariátegui para sí, revisionistas de todo tipo deturpando seus escritos para atacar a correta compreensão do marxismo ou mesmo honestos companheiros que têm uma compreensão errada de Mariátegui. 

Portanto, neste texto vamos esclarecer esse problema terminológico da obra de Mariátegui, afastar um pretenso revisionismo em suas intenções e expor a forma mais precisa de tratar alguns desses temas que geram confusão ao ler a obra de Mariátegui sem o entendimento de sua terminologia. Sobre as críticas a Mariátegui o Presidente Gonzalo já alertou: 

“Depois de se ter tentado enterrá-lo no silêncio, muito se escreveu sobre Mariátegui. Claro que também vemos Mariátegui ser muito falado, para o mistificar, para o tentar sistematicamente distorcer, para o tentar “melhorar” com pedantismos sem sentido. Em primeiro lugar, diz-se de Mariátegui que não era um marxista convicto e confesso e cujo pensamento não se sustentava no marxismo-leninismo.”

(Para Entender Mariátegui – Presidente Gonzalo, 1968) 

Não tenho aqui qualquer uma dessas intenções. A intenção desse texto é combater as distorções que são feitas da obra de Mariátegui devido a uma falta de compreensão ou deliberada apropriação oportunista da terminologia específica de Mariátegui, que se distingue da terminologia clássica do marxismo, visando esclarecer essa diferença terminológica e suas raízes. Posto isso, podemos prosseguir. 

No livro “7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana”, principal obra de Mariátegui, se encontra sua genial exposição do desenvolvimento histórico do Peru, identificando a contradição semifeudal e semicolonial, uma grande contribuição para o que viria a ser a tese do capitalismo burocrático de Mao Zedong, também contribuindo para a análise da questão indígena, do impacto da ideologia burguesa colonial na educação e da herança regionalista do colonialismo. Uma análise minuciosa dessa obra fornece um comparativo para compreender que essas mesmas contradições gerais se estendem para toda américa latina.

No ensaio “El Factor Religioso” é feita uma excelente análise do desenvolvimento histórico da religião no Império Inca e o impacto da colonização na religiosidade, no entanto nessa análise também se expressam discordâncias de Mariátegui com a ortodoxia marxista. Mariátegui coloca:

“O conceito de religião cresceu em extensão e profundidade. Já não reduz a religião a uma igreja e a um ritual. E reconhece às instituições e aos sentimentos religiosos um significado muito diferente daquele que lhes é ingenuamente atribuído, com um radicalismo incandescente, por pessoas que identificaram a religiosidade e o “obscurantismo”’.

(El Factor Religioso – José Carlos Mariátegui, 1928)

Apesar da afirmação, Mariátegui não esclarece como o “conceito de religião cresceu em extensão e profundidade”, não esclarece o porque ela não está identificada com o obscurantismo e não esclarece quem eram estes filósofos que estavam identificando esse novo significado da religião. Vejamos como a religião é tratada pelo método do materialismo dialético expresso pelas diretrizes da Comintern:

“Muitos comunistas fracos raciocinam da seguinte forma: ‘A religião não me impede de ser comunista. Acredito tanto em Deus quanto no comunismo. A minha fé em Deus não me impede de lutar pela causa da revolução proletária.’

Esta linha de pensamento é radicalmente falsa. Religião e comunismo são incompatíveis, tanto teórica como praticamente.

Todo comunista deve considerar os fenómenos sociais (as relações entre os seres humanos, as revoluções, as guerras, etc.) como processos que ocorrem de acordo com leis definidas. As leis do desenvolvimento social foram plenamente estabelecidas pelo comunismo científico com base na teoria do materialismo histórico que devemos aos nossos grandes professores Karl Marx e Friedrich Engels. Esta teoria explica que o desenvolvimento social não é provocado por nenhum tipo de força sobrenatural. Não, mais. A mesma teoria demonstrou que a própria ideia de Deus e de poderes sobrenaturais surge num estágio definido da história humana, e em outro estágio definido começa a desaparecer como uma noção infantil que não encontra confirmação na vida prática e na luta entre o homem e a natureza.”

(ABC do Comunismo – N.I. Bukharin and E. Preobrazhensky 1920)

O ABC do Comunismo, que era um manual obrigatório na Comintern durante os anos 20, claramente define a religião em absoluta contradição com a plenitude do esclarecimento filosófico marxista, como também colocou a análise marxista perpetuada pela Comintern:

“O partido comunista é obrigado a treinar os seus membros não apenas na prossecução devotada de um programa político específico e de exigências económicas e estatutos do partido; devem também ter implantado neles a visão de mundo clara e homogénea do marxismo, da qual o ateísmo é uma parte essencial.”

(RESOLUTION OF THE THIRD ECCI PLENUM ON THE COMMUNIST ATTITUDE TO RELIGION – Comintern, 1923)

O programa do Sexto Congresso da Comintern é claro quanto a questão religiosa:

“(O comunismo) Consequentemente, enterrará para sempre todo o misticismo, religião, preconceito e superstição e dará um impulso poderoso ao desenvolvimento do conhecimento científico que tudo conquista.

(…) Uma das tarefas mais importantes da revolução cultural que afeta as grandes massas é a tarefa de combater sistemática e inabalavelmente a religião – o ópio do povo. O governo proletário deve retirar todo o apoio estatal à Igreja, que é a agência da antiga classe dominante; deve impedir toda a interferência da Igreja nos assuntos educativos organizados pelo Estado e suprimir impiedosamente a atividade contra-revolucionária das organizações eclesiásticas. Ao mesmo tempo, o Estado proletário, ao mesmo tempo que concede a liberdade de culto e abole a posição privilegiada da religião anteriormente dominante, realiza propaganda anti-religiosa com todos os meios ao seu dispor e reconstrói todo o seu trabalho educativo, com base do materialismo científico.”

(Programme and Statute of the Comintern – Comintern, 1928)

Mariátegui acaba por gerar uma confusão quanto a esse fundamento da filosofia marxista, reduzindo nessa obra as características da religiosidade a misticismo e paixão, vocabulário esse que vem de diversas influências filosóficas estranhas ao marxismo sofridas por Mariátegui, como o filósofo Miguel de Unamuno, referenciado na obra, mas principalmente, Georges Sorel, que por sua vez é inspirado em Henri Bergson. Em diversos textos anteriores Mariátegui ainda utiliza o termo “religião” de forma ortodoxa, a exemplo desse texto: 

“As mulheres russas, principalmente camponesas, foram espontaneamente hostis à revolução. Através das suas superstições religiosas, elas viram no trabalho dos soviéticos nada mais que um trabalho ímpio, absurdo e herético.”

(La Mujer y la Politica – José Carlos Mariátegui, 1924)  

Antes de prosseguirmos, é necessário entender que Mariátegui não passou a usar essa estranha terminologia simplesmente porque ele quis; isto se deu por conta da própria compreensão que ele tinha do que constitui a tradição marxista:

“A tradição, por sua vez, caracteriza-se precisamente pela sua resistência a ser capturada numa fórmula hermética. Fruto de uma série de experiências – isto é, de sucessivas transformações da realidade sob a acção de um ideal que a ultrapassa ao consultá-la e a molda ao lhe obedecer – a tradição é heterogénea e contraditória nos seus componentes. Para reduzi-lo a um único conceito, é necessário contentar-se com a sua essência, renunciando às suas diversas cristalizações.”

(Heterodoxia de La Tradición, Jose Carlos Mariátegui, 1927)

Nesse texto Mariátegui corretamente demonstra que toda tradição passa por mutações, afinal são forjadas ao longo do movimento histórico, que está sujeito a lei da dialética; tendo essa compreensão, Mariátegui não teme em inovar o marxismo, considera-o “heterodoxo”, não de forma revisionista o deturpando, mas trazendo para o marxismo conceitos que vêm de outras influências que Mariátegui tinha. No entanto com essa aspiração inovadora, ele acaba por ignorar o fator pedagógico necessário para esclarecer o leitor. Um estudante do marxismo, que vê certos termos sendo usados harmonicamente nas obras clássicas de uma certa forma e depois se depara com Mariátegui os usando de outra forma sem qualquer contexto prévio pode acabar por se confundir e assim ser induzido ao erro. Por isso, é necessário ter um escrúpulo quanto ao todo harmônico do marxismo. Lenin assinala esse caráter harmônico:

“A doutrina de Marx é omnipotente porque é exacta. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma concepção integral do mundo, inconciliável com toda a superstição, com toda a reacção, com toda a defesa da opressão burguesa. O marxismo é o sucessor legítimo do que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês.”

(As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo – Vladimir Lenin, 1913)

Tal caráter foi sempre reforçado na tradição que se seguiu no Partido Bolchevique e Comintern:

“A filosofia marxista se distingue pelo seu caráter monolítico, completo e harmonioso”

(Materialismo Dialético – Academia de Ciências da URSS, 1954)

Mariátegui advoga pela heterodoxia do marxismo, isto porque estava cansado dos velhos “ortodoxos” da II Internacional, que engessaram o marxismo e o deturparam com seu cretinismo parlamentar, enquanto via nos heterodoxos como Sorel uma nova chama para o marxismo. No entanto Mariátegui cai no exagero ao renegar o termo “ortodoxia” e advogar pelo termo “heterodoxia”. A ortodoxia representa claramente esse caráter “monolítico, completo e harmonioso” do marxismo, enquanto usar o termo “heterodoxia” pode dar margem para deturpações descaradas. Vejamos o que Lenin disse acerca da ortodoxia e daqueles que culpavam a “ortodoxia” pelo dogmatismo e revisionismo:

“Não acreditemos que a ortodoxia significa confiar nas coisas, que a ortodoxia impede a aplicação crítica e o desenvolvimento posterior, que permite que os problemas históricos sejam obscurecidos por esquemas abstractos. Se há   discípulos ortodoxos que são culpados destes pecados verdadeiramente graves, a culpa deve recair inteiramente sobre esses discípulos e não de forma alguma sobre a ortodoxia, que se distingue por qualidades diametralmente opostas.”

(Once More on the Theory of Realisation – Vladimir Lenin, 1899)

É claro que o termo “ortodoxia” foi tão tomado de assalto pelo revisionista Kautsky que ele acabou por cair praticamente em desuso na literatura bolchevique posterior. No entanto, é necessário assinalar que o termo em si não é problemático. Com sua crítica à “ortodoxia”, na realidade Mariátegui crítica o que a tradição marxista-leninista chamou mais propriamente de dogmatismo: 

“O marxismo não reconhece conclusões e fórmulas invariáveis, obrigatórias para todas as épocas e períodos. O marxismo é o inimigo de todo dogmatismo.”

(Sobre o Marxismo na Linguística – Josef Stalin,1950) 

Porém para a estranha terminologia de Mariátegui “dogma” também possui outro significado, por sua vez, positivo: 

“Dogma é entendido aqui como a doutrina da mudança histórica. E, como tal, enquanto a mudança ocorrer, isto é, enquanto o dogma não se transformar num arquivo ou num código de uma ideologia do passado, nada garante a liberdade criativa, a função germinal do pensamento, como o dogma.

(…) O dogma, se preferirmos chamá-lo assim, ampliando o significado do termo, não impediu Lênin de ser um dos maiores revolucionários e um dos maiores estadistas. Um dogmático como Marx, como Engels, influencia os acontecimentos e as ideias mais do que qualquer grande herege ou qualquer grande niilista. Este fato por si só deveria anular toda apreensão, todo medo quanto à limitação da dogmática. A posição marxista, para o intelectual contemporâneo e não utópico, é a única posição que oferece um caminho para a liberdade e o progresso. O dogma tem a utilidade de um percurso, de um mapa geográfico: é a única garantia de não repetir duas vezes, na esperança de avançar, o mesmo percurso e de não nos trancarmos, por má informação, em qualquer impasse. O pensador extremamente livre,Geralmente está condenado à mais estreita das servidões: a sua especulação gira em torno de um ponto fixo a uma velocidade louca mas inútil. Dogma não é um itinerário, mas uma bússola na jornada. Para pensar livremente, a primeira condição é abandonar a preocupação com a liberdade absoluta. O pensamento tem uma necessidade estrita de direção e objeto. Pensar bem é, em grande parte, uma questão de direção ou órbita. O sorelismo como regresso ao significado original da luta de classes, como protesto contra a gentrificação parlamentar e pacifista do socialismo, é o tipo de heresia que é incorporada no dogma.”

(El proceso a la literatura francesa contemporánea – José Carlos Mariátegui, 1929)

Não se pode negar o quão confuso pode ser entender a harmonia desta dessas citações; por mais que realmente não exista nenhuma diferença entre elas além dos diferentes empregos terminológicos, essa estranha terminologia de Mariátegui quebra com o todo harmônico do marxismo e pode ser causa de confusão. 

No entanto o problema não fica exclusivamente no campo terminológico; isso também acaba por levar Mariátegui a algumas compreensões errôneas, por exemplo quanto a autossuficiência do método marxista, do materialismo-dialético como método suficiente para desenvolver a análise e conclusões necessárias da realidade; Mariátegui acaba por tomar conclusões de outros “ismos”: 

“O vitalismo, o activismo, o pragmatismo, o relativismo, nenhuma destas correntes filosóficas, naquilo que poderiam contribuir para a Revolução, foi deixada de fora do movimento intelectual marxista.”

(La filosofía moderna y el Marxismo – José Carlos Mariátegui, 1929)

Isso também se manifesta na noção que Mariátegui expressa sobre o “feminismo proletariado”, cuja crítica já está veiculada em outros textos do movimento maoista e democrático, por tanto não vou abordar aqui. Deve-se ter a clareza que o marxismo é o “ismo” definitivo por si só, a ideologia científica do proletariado; não é uma “corrente filosófica” que pega emprestado contribuições de outras correntes filosóficas – o marxismo é a revolução na filosofia: 

“A história científica da filosofia, consequentemente, é a história da germinação, nascimento e desenvolvimento da concepção materialista científica e suas leis. À medida que cresce o materialismo e este se desenvolve na luta contra as correntes do idealismo, a história da filosofia é também a história das lutas do materialismo contra o idealismo.

(…)O aparecimento do marxismo constituiu uma verdadeira descoberta, foi uma revolução em filosofia. Certamente, como em qualquer descoberta, como em qualquer salto, interrompe-se a graduação em cada transição para o novo estado; o marxismo, pois, não podia ter origem sem preliminar acumulação de mudanças quantitativas, em filosofia, e, neste caso, somas de desenvolvimento da filosofia até a descoberta de Marx e Engels.”

(O Marxismo é a Revolução na Filosofia – Andrei Zhdanov, 1947)

A estranha terminologia de Mariátegui não vai apenas ressignificar alguns termos periféricos, mas vai ressignificar até mesmo termos centrais, como o próprio “idealismo”:

“O materialista, se professa e serve religiosamente a sua fé, só pode ser combatido ou distinguido do idealista por uma convenção de linguagem. (Unamuno, abordando outro aspecto da oposição entre idealismo e materialismo, disse que “já que a matéria para nós nada mais é do que uma ideia, o materialismo é idealismo”).

(Ética e Socialismo – Jose Carlos Mariategui, 1929)

Mariátegui perde-se da harmonia marxista se utilizando de desnecessários e inconvenientes truques etimológicos; esses truques nada tem a oferecer para o materialismo:

“Tais truques etimológicos são o último recurso do pensamento idealista”

(Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – Friedrich Engels, 1886)

Mesmo tendo feito essa confusa reflexão acerca de uma suposta semelhança entre o materialismo e idealismo, esvaziando o termo idealismo etimologicamente a partir de Unamuno, Mariátegui também coloca com clareza a sua oposição ao idealismo:

“E se a palavra idealismo é desacreditada e comprometida pela servidão dos sistemas que designam todos os interesses e privilégios de classe do passado, que necessidade histórica tem o socialismo de tirar partido da sua protecção? A filosofia idealista, historicamente, é a filosofia da sociedade liberal e da ordem burguesa. E já conhecemos os frutos que, desde que a burguesia se tornou conservadora, produz na teoria e na prática.”  

(El Idealismo Materialista – Jose Carlos Mariategui, 1929)

Estes termos renovados nada acrescentam, apenas confundem. Ao ler Mariátegui é necessário entender o que ele realmente quis dizer com esses estranhos termos, e ter a clareza que ele não quis dizer absolutamente nada de revisionista e idealista, como vimos acima e como veremos mais claramente a frente. Mas antes vamos elucidar de onde vem as inspirações inovativas de Mariátegui. 

No texto “Henri de man y la crises del marxismo” está posto o porque Mariátegui expressou a já anterior referenciada inspiração em Sorel:

“Através de Sorel, o marxismo assimila os elementos e aquisições substanciais das correntes filosóficas posteriores a Marx. Superando as bases racionalistas e positivistas do socialismo do seu tempo, Sorel encontrou em Bergson e nos pragmatistas ideias que revigoraram o pensamento socialista, devolvendo-o à missão revolucionária da qual a gentrificação intelectual e espiritual dos partidos e dos seus parlamentares o tinha gradualmente distanciado. , que se contentavam, no campo filosófico, com o historicismo mais plano e o evolucionismo mais temeroso. A teoria dos mitos revolucionários, que aplica a experiência dos movimentos religiosos ao movimento socialista, estabelece as bases de uma filosofia da revolução, profundamente impregnada de realismo psicológico e sociológico”

(Henri de man y la crises del marxismo – Jose Carlos Mariategui, 1929)

Como descrito acima, Mariátegui vê em Sorel o grande mérito de trazer aspectos da filosofia de Henri Bergson para o marxismo no combate as “bases racionalistas e positivistas do socialismo do seu tempo”, que Mariátegui considerava a raiz do cretinismo parlamentar. Para Mariátegui a assimilação “materialista” da filosofia de Bergson inflamou a violência revolucionária de Sorel contra o cretino reformismo parlamentar dos revisionistas da II Internacional. Com isso Mariátegui comete o erro pragmático de julgar uma obra apenas por uma de suas consequências positivas, sem no entanto investigar e condenar seus errôneos meios que levaram acidentalmente a essa consequência positiva e que leva a muitas outras consequências negativas. Plekhanov esclarece a oposição entre a epistemologia materialista e o idealismo de Bergson:

“O preconceito avassalador de Bergson em favor do idealismo frustra os próprios princípios que ele consegue moldar quando se baseia nas suas premissas materialistas. Assim, tendo afirmado que a nossa faculdade de compreender é um simples apêndice da nossa faculdade de agir , ele apressa-se a acrescentar, sob o argumento de uma análise mais aprofundada, que “ na realidade não existem coisas, existem apenas ações ” (p 211, grifo nosso). . Isso é muito radical. Mas se for verdade, nem é preciso dizer que Bergson não tem mais nada a não ser apelar à consciência , e é isso que ele faz. Para ele, a “consciência” é “o princípio básico” (p. 202). É verdade que ele qualifica isto dizendo que usa o termo “consciência” por falta de uma palavra melhor. “Mas não nos referimos à consciência estreita que funciona em cada um de nós” (p. 202). Tal qualificação, contudo, não contém absolutamente nada de novo e, portanto, não melhora a situação; na verdade, isso os confunde ainda mais. A consciência do tipo superindividual é um mito; a referência a ele pode satisfazer os sentimentos religiosos de um crente, mas é positivamente inútil como base para uma filosofia que, de fato, é estranha ao dogmatismo”

(Henri Bergson – Georgi Plekhanov, 1909)

Portanto, a “teoria dos mitos revolucionários” da qual fala Mariátegui não estabelece uma “uma filosofia da revolução”, pelo contrário, essa teoria advém da reacionária filosofia idealista de Bergson, que parte do erro de que o espírito preconiza a materialidade e não que a materialidade preconiza o espírito, o que levou Bergson a conclusão de que é necessário o cultivo de uma mística que anima o espírito humano para o movimento social, negando que o conhecimento racional da materialidade possa animar esse espírito.

Mariátegui, que via em Sorel um revolucionário ardente e renovador do marxismo, foi otimista em considerar que ele havia assimilado a posição de Bergson a partir de uma perspectiva materialista, expurgando seu idealismo. No entanto não isso que ocorreu:

“Com base na desintegração da filosofia burguesa, na derrota dos fundamentos do conhecimento científico, surgiu a mitologia fascista moderna, florescendo igualmente tanto na Itália fascista como na Alemanha. Georges Sorel, influenciado pela filosofia de Henri Bergson, já em sua época desenvolveu a teoria do mito. Para ele, a greve, a revolução são mitos. Mussolini foi educado na escola do sindicalista Sorel e ao mesmo tempo nas obras de Nietzsche e Pareto, que ouviu em Lausanne. Mussolini emprestou deles a teoria do mito. O que é um mito? Sorel entende por mito uma ideia completamente irracional que não pode ser provada logicamente com base em argumentos racionais. É, por sua própria natureza, um objeto de fé. Um mito não deve e não pode ser a expressão de nenhuma verdade objetiva: não é a verdade do mito que é importante, mas as ações que ele gera. O seu papel e significado são determinados pela força do seu efeito sobre as massas. Deve servir como instrumento para dominar as massas. Não há nada de racional no mito, é um objeto de experiência, um objeto de sentimento, um símbolo conhecido é necessário para despertar as massas à ação e à atividade constante.”

(The ideology of Fascism – Abram Deborin, 1936) 

O idealismo místico de Bergson se tornou, assim uma arma para os fascistas. Mariátegui tenta fazer dele uma arma para os comunistas, mas isto não é possível, pois o comunismo está fundado na verdade objetiva, nas teses racionais provadas logicamente e experimentalmente com base na argumentação metodológica do materialista dialético. Este não inspira as massas revolucionárias com símbolos místicos, mas com o esclarecimento da realidade material e a necessidade de sua transformação para que ocorra a sua libertação; disso decorrem os símbolos revolucionários. Estes não advém da mística irracional, mas do mais objetivo esclarecimento materialista. Um revolucionário que se inspira por outros caminhos é um revolucionário por circunstâncias subjetivas, amanhã novas circunstâncias podem o levar a ser um reacionário, tal como foi Mussolini, tal como foi com o próprio Sorel que se associou intimamente ao fascismo em seus anos finais. Bergson tal qual outros filósofos da decadência burguesa não foram mais que protofascistas:

“O representante mais conhecido do intuicionismo é o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). Bergson afirma que o conhecimento raciocinado que se obtêm por meio das ciências, como a matemática, a física, a química, servem apenas a objetivos estritamente práticos e não descobre a essência das coisas. A razão só é capaz de reconhecer a realidade em seu aspecto externo, porém tal conhecimento não é verdadeiro, pois deforma a verdadeira realidade. O conhecimento autêntico da realidade em seu aspecto interno só nos pode proporcionar, segundo Bergson, uma filosofia que saia dos limites da razão e se encaminhe para a intuição. Essa intuição mística concebe o mundo material como uma corrente compacta de gêneses espirituais, que não se submetem ao conhecimento racional; a matéria é considerada como uma “consciência colhida com pinças”; a vida é interpretada como algo imaterial; declara-se o “impulso vital” místico, como princípio dos processos vitais. Numa palavra, Bergson proclama abertamente que a fonte da gênese espiritual e do “impulso vital” é a divindade, torrente ininterrupta de “energia criadora”. Os sofismas refinados usados por Bergson para propagar seu idealismo místico tendem a revestir sua filosofia com uma aparência de algo novo e original. Na realidade, nutre-se apenas das escórias das velhas doutrinas filosóficas reacionárias, como das do neoplatônico Plotin ou das do “pai da igreja” católica Agostinho.

Em 1932, Bergson publicou um livro arquirreacionário, “Duas Fontes da Moral e da Religião”, no qual prega a necessidade biológica das guerras, arremete contra a democracia como concepção política “antinatural”, fala dos gênios super-homens místicos como guias espirituais da humanidade, e “argumenta” sobre a necessidade eterna da religião como sustentáculo espiritual do regime capitalista existente. É evidente que o intuicionismo se converteu numa das teorias anticientíficas utilizadas amplamente para justificar, do ponto de vista ideológico, o latrocínio imperialista e o saque dos povos coloniais.”

(Compêndio de História da Filosofia – Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS)

Tal como Marx inverteu a dialética hegeliana do idealismo para o materialismo, Mariátegui achou que Sorel havia feito o mesmo com a mística de Bergson; no entanto, Sorel apenas reproduziu essa mística com uma aparência revolucionária e logo se entregou ele mesmo ao reacionarismo fascista. Mariátegui, assim, dando ingênua continuidade a Sorel apenas ressignificou de forma confusa e obscura todas as palavras em torno dessa mística para a relacionar com o comunismo. Mariátegui viu nessas palavras não a fonte do ânimo, mas palavras que representam esse ânimo que provém da concepção materialista do universo, e por isso seria absurdo chamar Mariátegui de revisionista e idealista por usar esses termos. Sua posição materialista é clara:

“A primeira posição falsa nesta meditação é supor que uma concepção materialista do universo não é adequada para produzir grandes valores espirituais. Os preconceitos teológicos, e não filosóficos, que permanecem como resíduo nas mentes que se imaginam livres de dogmatismos ultrapassados, levam a associar uma vida mais ou menos descontrolada a uma filosofia materialista. A história contradiz, com inúmeros testemunhos, este conceito arbitrário. A biografia de Marx, de Sorel, de Lenin, de milhares de outros agonistas do socialismo, nada tem a invejar como beleza moral, como plena afirmação do poder do espírito, às biografias dos heróis e ascetas que, no passado, trabalhado segundo uma concepção espiritualista ou religiosa, no sentido clássico destas palavras. A URSS combate a ideologia burguesa com as armas do materialismo mais ultraísta.

(…) Peculiar e exclusiva da tentativa de Henri de Man de espiritualizar o socialismo é, no entanto, a seguinte proposição: “Os valores vitais são superiores aos materiais, e entre os vitais, os mais elevados são os espirituais. expresso assim: em igualdade de condições, as satisfações mais desejáveis ​​são aquelas que se sente na consciência quando esta reflete a realidade mais vívida do eu e do ambiente que o rodeia.” Esta categorização arbitrária de valores destina-se apenas a satisfazer os pseudo-socialistas ansiosos por receber uma fórmula equivalente à dos neotomistas: “primazia do espiritual”.

Henri de Man nunca conseguiu explicar satisfatoriamente como os valores vitais diferem dos materiais. E ao distinguir os materiais dos espirituais, teríamos que aderir ao dualismo mais arcaico.”  

(El Idealismo Materialista – Jose Carlos Mariategui, 1929)

No entanto, as intenções de Mariátegui com essa resignificação dos termos religiosos não devem ser deturpadas; ele nunca se opôs ao princípio marxista de que a religião (no sentido marxista que estamos esclarecendo aqui) vai ser abolida pelo materialismo militante e com a superação das contradições que geram a religião, bem como nunca se opôs a campanha anti-religiosa na URSS, a formação ateia e as orientações anti-religiosas da Comintern, como alguns oportunistas deturpam, impondo sua própria aspiração “religiosa popular” como se essa fosse sua propria aspiração; Mariátegui não era nenhum advogado da religiosidade popular, nenhum defensor da “boa religião das classes oprimidas” contra a “má religião das classes opressoras”; apenas foi o elaborador de um novo significado para o termo “religião” e outros termos místicos inspirado nos autores já referenciados. É a conveniência dessa ressignificação que estamos contestando aqui; sobre o materialismo militante na URSS isto é tudo que foi dito pelo autor:

“A URSS não está a testar, como alguns podem imaginar, uma nova política religiosa. A linha do governo sobre esta questão, conforme testemunhado com autoridade incontestável pela Igreja Russa, é a mesma de anos atrás. As sociedades ateístas continuam a sua propaganda; mas o Estado não se envolve na perseguição de ideias religiosas com qualquer crueldade repentina que, neste renascimento do fervor medieval que caracteriza em parte a Reacção no Ocidente, pudesse exigir uma cruzada. Todos que acompanham o curso da vida russa, por meio de documentação séria, sabem disso.”  

(Movilizacion Anti-Sovietica – Jose Carlos Mariátegui, 1930)

Essa ressignificação que Mariátegui faz do sentido do termo religião vai permear diversos de seus escritos. Antes tratar da principal obra de Mariátegui, vou me ater a citar aqui apenas mais escrito que tem consequências mais profundas dessa conceituação:

“Marx não está presente, em espírito, em todos os seus supostos discípulos e herdeiros. Aqueles que a deram continuidade não foram os pedantes professores alemães da teoria da mais-valia, incapazes de acrescentar algo à doutrina, dedicados apenas a limitá-la, a estereotipá-la; Pelo contrário, foram os revolucionários, taxados de heresia, como Georges Sorel – outro moribundo diria Unamuno – que ousaram enriquecer e desenvolver as consequências da ideia marxista. O “materialismo histórico” é muito menos materialista do que normalmente se pensa. Um filósofo liberal, um filósofo idealista, Benedetto Croce, faz-lhe plena justiça a este respeito. «É evidente – escreve Croce – que a idealidade ou absolutismo da moralidade, no sentido filosófico de tais palavras, é uma premissa necessária do socialismo. O interesse que nos move a construir um conceito de mais-valia. Não é um interesse moral ou social, como você quiser chamá-lo? Em economia pura, podemos falar de mais-valia? O proletário não vende a sua própria força de trabalho pelo que vale, dada a sua situação na sociedade actual? E, sem esta premissa moral, como explicar, juntamente com a acção política de Marx, o tom de indignação violenta e de sátira amarga que se verifica em todas as páginas de O Capital ? E Adriano Tilgher, que prefacia uma tradução de Unamuno para o italiano — La Sfinge sonza Oedipus — nos seus ensaios críticos sobre o marxismo e o socialismo diz: «Marx não é um economista puro, nem um sociólogo puro, nem um historicista puro: ele não contenta-se simplesmente em descrever a realidade social tal como era na sua época e em extrair da observação do presente as leis empíricas das suas transformações futuras: ele é essencialmente um revolucionário, cujo olhar está obstinadamente fixo no que deveria ser». Tenho certeza de que se Unamuno meditar mais profundamente sobre Marx descobrirá no criador do materialismo histórico não um saduceu, um judeu materialista, mas, antes, como um Dostoiévski, um cristão, uma alma agonizante, um espírito polêmico. E talvez prove que Vasconcelos tem razão ao afirmar que o atormentado Marx está mais próximo de Cristo do que o doutor de Aquino.”

(La Agonía del Cristianismo de Don Miguel de Unamuno, José Carlos Mariátegui, 1926) 

Nota-se uma confusa exposição do referenciado filósofo idealista sobre como o materialismo histórico é “menos materialista do que se pensa”, atribuindo a ele uma raiz moral absoluta, o que nada têm em comum com o marxismo, que rejeita a noção idealista de uma “moral absoluta”, compreendendo com clareza que a moralidade é uma formação que se dá pelas condições e necessidades materiais vigentes; o que confere essa referida moralidade para a obra de Marx não é nenhuma raiz “menos materialista” do materialismo histórico, mas é exatamente a raiz materialista da nascente moral proletária, da qual Karl Marx foi um desses filhos. Vejamos como o marxismo compreende o materialismo da moralidade: 

“Lênin demonstrou de maneira convincente a inconsistência e o absurdo das afirmações dos ideólogos da burguesia no sentido de que os princípios da moral foram prescritos por Deus ao homem e por isso são “eternos” e “imutáveis”. Ao mesmo tempo, Lênin desmascarou as afirmações idealistas dos moralistas burgueses no sentido de que os princípios morais são inerentes à própria natureza humana e que foram postos em sua “alma” para todo o sempre.

A moral, como uma das formas de consciência social, surge no processo da atividade produtiva e de trabalho dos homens na sociedade. Os princípios morais e as normas de conduta não têm suas raízes nas particularidades biológicas do homem, mas nas condições da sua vida social. Por isso que a moral é um fenômeno social. Os fundadores do marxismo-leninismo nos ensinam que a moral é uma categoria

histórica. Não há e não pode haver uma só moral útil para todos os tempos e povos. Com a modificação das condições sociais e econômicas modificam-se também as regras que

regulam as relações recíprocas entre os homens, as regras de sua conduta. “Não acreditamos na moral eterna e desmascaramos todos os embustes e contos de fada sobre Nikolai Ivanovich Boldyriev a moral”, afirmou Lênin.”

(A Formação da Moral Comunista – Nikolai Ivanovich Boldyriev, 1951)

Mariátegui vai reforçar sua errônea compreensão de uma moral proletária absoluta neste outro texto: 

“Mas é evidente que a idealidade e o caráter absoluto da moralidade, no sentido filosófico de tais palavras, são um pressuposto necessário do socialismo.

(…) O materialismo histórico não impede de forma alguma o desenvolvimento mais elevado daquilo que Hegel chamou de espírito livre ou absoluto ; é, pelo contrário, a sua condição preliminar.” (Ética y Socialismo – Jose Carlos Mariátegui, 1929) 

Na realidade o materialismo demonstra que a noção de Hegel de um “espírito absoluto” como autoconsciência da “ideia absoluta” parte do erro:

“O método de Hegel exige o reconhecimento da evolução infinita; segundo a expressão do conhecido escritor russo Hertzen, este método é a “obra da revolução”. Em compensação o sistema de Hegel restringe essa evolução, afirmando que sua própria filosofia é o autoconhecimento absoluto das ideias mundiais, e o Estado prussiano policial, sua encarnação suprema na sociedade.”  

(Compêndio de História da Filosofia – Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS)

Mariátegui aqui, se utilizando dessa terminologia hegeliana, pode levar o leitor a uma compreensão errada da moralidade; a moral proletária, como já esclarecido, não parte de uma “idealidade” e muito menos de um “caráter absoluto”, mas sim das condições e necessidades materiais vigentes; muito possivelmente Mariátegui aqui tenha novamente apenas gerado confusão com o uso inconveniente do termo “absoluto”, querendo na verdade dizer outra coisa, como já vimos nos casos anteriores, mas nesse caso ele não chega a esclarecer isso. 

Já para aqueles que insistem em relacionar Cristo com um “espírito revolucionário” partilhado pelos comunistas, Plekhanov dá a devida resposta:

“É verdade que é extremamente difícil para nós julgar exatamente o que era essa doutrina na sua forma original, e só por isso devemos ser cuidadosos na nossa abordagem a ela e não colori-la com as nossas próprias aspirações. Seria bom, em qualquer caso, lembrar o ditado: ‘Meu Reino não é deste mundo.’ Quanto aos primeiros cristãos, quase o mais proeminente entre eles escreveu: ‘Servos, obedeçam aos seus amos!’ Por que distorcer a verdade histórica?”

(On the So-Called Religious Seekings in Russia – Georgi Plekhanov, 1909)

Agora vamos finalmente retornar para os 7 Ensaios. Vamos aqui também destacar que Mariátegui corretamente afirma que o ativismo anti-religioso, em suas palavras, anti-clerical, já que este possui uma nova ideia de religião, não deve estar desassociado da superação das condições materiais que tornam a religião necessária:

“O socialismo, de acordo com as conclusões do materialismo histórico – que não deve ser confundido com o materialismo filosófico – considera as formas eclesiásticas e as doutrinas religiosas, peculiares e inerentes ao regime económico-social que as sustenta e produz. E ele está, portanto, preocupado em mudar este e não aqueles. A mera agitação anticlerical é considerada pelo socialismo como uma diversão liberal burguesa.”

(El Factor Religioso, José Carlos Mariátegui, 1928) 

Esta foi uma compreensão que os materialistas modernos não alcançaram; no entanto alguns estudantes do marxismo, por erro ou desonestidade, colocam em completa oposição o ateísmo dos materialistas modernos do ateísmo do materialismo marxista, o que, como já colocava Lenin, é absolutamente falso:

“O marxismo é materialismo. Como tal, ele é tão implacavelmente hostil à religião como o materialismo dos enciclopedistas do século XVIII ou o materialismo de Feuerbach. Mas o materialismo dialéctico de Marx e Engels vai mais longe que os enciclopedistas e Feurbach, aplicando a filosofia materialista ao domínio da história, ao domínio das ciências sociais. Devemos lutar contra a religião. Isto é o á-bê-cê de todo o materialismo e, por conseguinte, também do marxismo. Mas o marxismo não é um materialismo que se deteve no á-bê-cê. O marxismo vai mais longe. Ele diz: é preciso saber lutar contra a religião, e para isso é preciso explicar de modo materialista a fonte da fé e da religião entre as massas.”

(Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião – Vladimir Lenin, 1909)

Mariátegui através dessa ressignificação, vai imbuir um caráter religioso no comunismo, negando assim a validade presente da célebre palavra de ordem de Karl Marx: 

“Sabemos que uma revolução é sempre religiosa. A palavra religião tem um novo valor, um novo significado. Serve mais do que apenas designar um rito ou uma igreja. Pouco importa que os soviéticos escrevam nos seus cartazes de propaganda que “a religião é o ópio do povo”. O comunismo é essencialmente religioso. O que ainda causa mal-entendidos é o antigo significado da palavra”

(El Proceso de la Literatura – Jose Carlos Mariátegui, 1928) 

Falando sobre o escritor ateu González Prada, Mariátegui vai correlacionar sua paixão e moralidade como forma de religiosidade: 

“González Prada previu o destino de todas as crenças sem perceber que ele próprio era um pregador de uma crença, um confessor de uma fé. O que mais se admira neste racionalista é a sua paixão. O que é mais respeitado neste ateu, um tanto pagão, é o seu ascetismo moral. Seu ateísmo é religioso. É, sobretudo, nos momentos em que parece mais veemente e mais absoluto. González Prada tem algo daqueles ascetas seculares que Romain Rolland concebe. Devemos procurar o verdadeiro González Prada no seu credo de justiça, na sua doutrina do amor; não no anticlericalismo um tanto vulgar de algumas páginas de Horas de Luta.”

(El Proceso de la Literatura – Jose Carlos Mariátegui, 1928) 

Não vendo essa mesma paixão na teologia, Mariátegui vai afirmar que escritos teológicos destituídos dessa impressão subjetiva da paixão não são verdadeiramente religiosos: 

“Os poetas da República não herdaram dos poetas da Colônia o amor pela poesia teológica – incorretamente chamada de religiosa ou mística – mas herdaram o amor pela poesia cortês e ditirâmbica.”

(El Proceso de la Literatura – Jose Carlos Mariátegui, 1928) 

Neste seguinte texto Mariátegui demonstra a motivação por trás de sua resignação das terminologias religiosas:

“O homem contemporâneo precisa de fé. E a única fé que pode ocupar Seu eu profundo é uma fé combativa. Os tempos de viver docemente não retornarão, sabe-se lá por quanto tempo. A doce vida pré-guerra não gerou nada além de ceticismo e niilismo. E da crise desse ceticismo e desse niilismo, nasce a necessidade rude, forte e peremptória de uma fé e de um mito que leva os homens a viver perigosamente.”

(La Emoción de Nuestro Tiempo – Jose Carlos Mariátegui, 1925)  

Nesta obra, é feita uma magistral análise acerca da crise do capitalismo, de suas instituições demoliberais, da decadência filosófica burguesa que descamba para o niilismo e ceticismo, e da ascensão das paixões revolucionárias do proletariado despertadas pelo comunismo; no entanto, essa obra é selada com os mesmos termos estranhos que vimos anteriormente. Vejamos o que Mariátegui afirma sobre metafísica e mito:

“Mas o homem, tal como a filosofia o define, é um animal metafísico. Não se pode viver frutuosamente sem uma concepção metafísica da vida. O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem significado histórico. A história é feita por homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os outros homens são o coro anônimo do drama.”

(El Hombre y el Mito – Jose Carlos Mariátegui, 1925)

Qual é essa filosofia que define o ser humano como um animal metafísico ? não se trata da filosofia materialista: Marx e Engels demonstram que a filosofia materialista moderna expurgou a metafísica da filosofia e que com Feuerbach o materialismo derrotou a concepção metafísica para sempre:

“A metafísica do século XVII , expulsa do campo pelo Iluminismo francês , notadamente, pelo materialismo francês do século XVIII, experimentou uma restauração vitoriosa e substancial na filosofia alemã , particularmente na filosofia especulativa alemã do século XIX. Depois de Hegel a ter ligado de forma magistral a toda a metafísica subsequente e ao idealismo alemão e fundado um reino metafísico universal, o ataque à teologia correspondeu novamente, como no século XVIII, a um ataque à metafísica especulativa e à metafísica em geral . Será derrotado para sempre pelo materialismo , que agora foi aperfeiçoado pelo trabalho da própria especulação e coincide com o humanismo.”

(The Holy Family – Karl Marx e Friedrich Engels, 1844)

Portanto, o uso do termo metafísica que Mariátegui faz aqui para expressar essas paixões humanas não se faz conveniente, pois retoma um significado de metafísica completamente distinto de como o termo é usado na filosofia materialista dos modernos até os contemporâneos marxistas; utilizar esse termo de outra forma é criar confusão. O mesmo se diz acerca do uso que Mariátegui faz do termo “mito”; vejamos como Plekhanov define mito:

“A palavra grega ‘ mythos ‘ significa uma história . O homem se assusta com algum fenômeno, seja real ou imaginário é tudo a mesma coisa. Ele tenta explicar para si mesmo como isso aconteceu; o mito nasce.

(…) O mito é uma história que responde às perguntas: Por quê? Como? O mito é a primeira expressão da consciência do homem sobre a conexão causal entre os fenômenos.

Um dos mais proeminentes etnólogos alemães dos nossos dias diz: “O mito é a expressão de uma visão de mundo primitiva”.Isso está certo. É preciso ter uma visão de mundo muito primitiva para acreditar que a lua é um homem chamado Opossum que ressuscitou dos mortos e ascendeu ao céu. Qual é a principal característica distintiva desta visão de mundo primitiva? É que quem a ela adere anima os fenômenos da natureza. Todos os fenômenos naturais são interpretados pelo homem primitivo como ações de seres particulares que, como ele, são dotados de consciência, necessidades, paixões, desejos e vontade.”

(On the So-Called Religious Seekings in Russia – Georgi Plekhanov, 1909)

Portanto, vemos que o significado materialista de “mito” não tem nada em comum com o significado que Mariátegui atribui a mito; a ressignificação desse termo é criação de confusão, e esta confusão se estende a outros termos: 

“O proletariado tem um mito: a revolução social. Ele caminha em direção a esse mito com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa se diverte numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que mal-entendido! A força dos revolucionários não está na sua ciência; Está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística e espiritual. É a força do mito.”  

(El Hombre y el Mito – Jose Carlos Mariategui, 1925)

A revolução social não é nenhum mito, é uma verdade filosófica, uma lei do movimento histórico esclarecida a partir do método materialista-dialético. A paixão revolucionária é de fato parte da força dos revolucionários, mas essa força não possui consistência se não estiver munida da teoria revolucionária; por tanto essa colocação também acaba por gerar confusão com o conceito de práxis marxista. 

Da mesma forma, a revolução social não é nenhuma mística; o misticismo nunca foi utilizado como uma qualidade que os comunistas devem cultivar; o misticismo pode servir sim como um instrumento para impulsionar a ação daqueles indivíduos propensos a fantasia, no entanto essa mistificação não se faz necessária para aqueles que possuem um entendimento materialista dialético da realidade. Com esse método se revela a necessidade revolucionária; expor essa necessidade de forma clara e apaixonada já é o suficiente para instigar as mentes revolucionárias. Não é necessário florir a realidade com misticismo, devemos seguir o exemplo de Lenin que arrancou as flores místicas da obra de Hegel:

“Os conceitos humanos são a alma da natureza – esta é apenas uma forma mística de dizer que nos conceitos humanos a natureza se reflete de uma forma distinta. 

(…) É repulsivo ler como Hegel exalta Aristóteles pelas suas “verdadeiras noções especulativas” (373 da “alma”, e muito mais), claramente tecendo uma história de absurdo idealista (= místico).”

(Conspectus of Hegel’s Book Lectures On the History of Philosophy: Volume XIV. Volume II Of the History Of Philosophy – Vladimir Lenin, 1915)

Vamos então esclarecer o que realmente significa o termo “misticismo” para o materialismo: 

“Misticismo é deuteroscopia. O místico especula acerca da essência da Natureza ou do homem, mas apenas na e com a imaginação de que especula sobre um outro ser pessoal , distinto de ambos. O místico tem os mesmos objectos que o pensador simples, consciente de si; mas o objecto real é objecto para o místico não como ele próprio, mas apenas como um objeto imaginado e, por isso, o objecto imaginado é para ele o objecto real.”

(Essência do Cristianismo – Ludwig Feuerbach, 1841) 

Também se faz necessário esclarecer o termo “fé”. Apesar de “fé” e “crença” serem mais utilizados no vocabulário comum de forma genérica e portanto não haver problema na utilização desses termos no campo marxista, a crença/fé propriamente religiosa é bem definida e nada tem em comum com o marxismo:

“A fé é o poder da imaginação que transforma o real em irreal, o irreal em real – a contradição directa com a verdade dos sentidos, a verdade da razão. A fé nega o que a razão objetiva afirma e afirma o que ela nega.”

(Essência do Cristianismo – Ludwig Feuerbach, 1841)  

Outro termo muito utilizado por Mariátegui é espírito. Também não existe grande problema na utilização desse termo, que está bem presente nos primeiros clássicos do marxismo, mas desde que também nos atentemos ao seu significado materialista: 

“Há uma disputa diária sobre o que devemos chamar de Espírito: cada um diz o que quer; ninguém atribui as mesmas ideias a esta palavra, e todos falam sem se entenderem.

Para podermos dar uma ideia justa e precisa desta palavra Espírito, e dos diferentes significados que ela assume, devemos primeiro considerar o espírito em si.

Ou olhamos para o espírito como o efeito da faculdade de pensar (e a mente é, neste sentido, apenas o conjunto dos pensamentos de um homem), ou a consideramos como a própria faculdade despendida.

(…) Para nos assegurarmos desta verdade, consideremos a natureza. Ela nos apresenta objetos; esses objetos têm relações conosco e entre si; o conhecimento dessas relações forma o que chamamos de Espírito: é mais ou menos grande, dependendo se o nosso conhecimento deste tipo é mais ou menos extenso. O espírito humano eleva-se ao conhecimento destas relações; mas esses são limites que ele nunca ultrapassa.”

(De l’Esprit – Claude-Adrien Helvétius, 1758)

O termo materialista de espírito não deve ser confundido com definições comuns a metafísica, idealismo e religião. A definição em acordo com o materialismo foi originalmente trabalhada em profundidade na obra “Système de la Nature” de Holbach, no entanto vamos citar aqui a breve definição dada por Plekhanov: 

“O que é um espírito? Eu disse o suficiente sobre isso em meu primeiro artigo. Aqui me limitarei à observação de que se um espírito é, como sabemos, um ser por cuja volição os fenômenos naturais são ocasionados, ele deve estar acima da natureza ; em outras palavras, deve ser considerado um ser sobrenatural.”

(On the So-Called Religious Seekings in Russia, Georgi Plekhanov, 1909) 

Essa claramente não era a compreensão de Mariátegui, que desprezou as tendências que se referiam a esse significado de “espírito”:  

“Os preconceitos da universidade, do cenáculo e do café, exigem flertar com os evangelhos do espiritismo, impõem o gosto do mágico e do obscuro, devolvem ao espírito um sentido misterioso e sobrenatural. É lógico que estes sentimentos dificultam a aceitação do marxismo. Mas é absurdo ver neles outra coisa senão um humor reacionário, do qual não podemos esperar qualquer contribuição para o esclarecimento dos problemas da Inteligência e da Revolução.”

(El proceso a la literatura francesa contemporánea – José Carlos Mariátegui, 1929) 

Tampouco essa força da qual fala Mariátegui é religiosa. Ao afirmar que o comunismo é religioso, Mariátegui acaba por renovar os desvios expressos por alguns materialistas apaixonados pelo humanismo, como o próprio Feuerbach, desenvolvendo uma concepção de “religião” sem deuses e forças sobrenaturais. Tal concepção foi combatida por Engels: 

“Se Feuerbach quer estabelecer a verdadeira religião na base de uma visão da Natureza essencialmente materialista, isso quer dizer apenas tanto como que ele [quer] apreender a química moderna com a verdadeira alquimia. Se a religião pode subsistir sem o seu deus, então também a alquimia o pode sem a sua pedra filosofal.”

(Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã – Friedrich Engels, 1886) 

Lenin, de maneira energética confirma o absurdo do conceito de “religião sem Deus” e outros conceitos absolutamente estranhos ao marxismo que estava em moda em alguns círculos marxistas: 

“Agora surgiram os Estudos de Filosofia do Marxismo . Li todos os artigos, exceto o de Suvorov (estou lendo agora), e cada artigo me deixou furiosamente indignado. Não, não, isso não é marxismo! Nossos empírio-críticos, empírio-monistas e empírio-simbolistas estão se debatendo num pântano. Tentar persuadir o leitor de que a “crença” na realidade do mundo externo é “misticismo” (Bazarov); confundir da maneira mais vergonhosa o materialismo com o kantismo (Bazarov e Bogdanov); pregar uma variedade de agnosticismo (empiriocrítica) e idealismo (empiriomonismo); ensinar aos trabalhadores o “ateísmo religioso” e a “adoração” das potencialidades humanas superiores (Lunacharsky); declarar o ensino de Engels sobre a dialética como misticismo (Berman); tirar proveito do poço fedorento de alguns “positivistas” franceses ou outros, de agnósticos ou metafísicos, que o diabo os leve, com a sua “teoria simbólica da cognição” (Yushkevich)! Não, sério, é demais. Na verdade, nós, marxistas comuns, não estamos bem em filosofia, mas por que nos insultar servindo-nos de coisas como a filosofia do marxismo! Prefiro deixar-me arrastar e esquartejar do que consentir em colaborar num órgão ou órgão que prega tais coisas.”

(A Letter to A. M. Gorky – Vladimir Lenin, 1908) 

Contra essa ressignificação do sentido de “religião” para tornar o comunismo “religioso” Lenin já advertia:

“Outro exemplo: pode-se em todas as condições condenar igualmente os membros do partido social-democrata por declararem «o socialismo é a minha religião» e por defenderem concepções correspondentes a esta declaração? Não. O desvio do marxismo (e, consequentemente, também do socialismo) é aqui indubitável, mas o significado deste desvio, o seu peso específico, por assim dizer, podem ser diferentes em situações diferentes. Uma coisa é um agitador ou uma pessoa que intervém perante a massa operária falar assim para ser mais compreensível, para começar a exposição, para ilustrar de modo mais real as suas concepções em termos mais habituais para a massa não desenvolvida. Outra coisa é um escritor começar a pregar a «construção de Deus» ou um socialismo construtor de Deus (no espírito, por exemplo, dos nossos Lunatchárski e Companhia). Tanto quanto no primeiro caso a condenação poderia ser desprovida de motivo e até uma deslocada restrição da liberdade do agitador, da liberdade de influência «pedagógica», assim no segundo caso a condenação do partido é necessária e obrigatória. A proposição «o socialismo é uma religião» é para uns uma forma de passar da religião para o socialismo, para outros do socialismo para a religião.”

(Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião – Vladimir Lenin, 1909)

Pode-se dizer que Mariátegui já ve estabelecida a verdadeira religião na base de uma visão das paixões humanas e motivação social:

“A emoção revolucionária não é uma emoção religiosa? Acontece no Ocidente que a religiosidade passou do céu para a terra. Os seus motivos são humanos, são sociais; Eles não são divinos. Eles pertencem à vida terrena e não à vida celestial.”

(Ghandi – Jose Carlos Mariátegui)  

Assim, Mariátegui identifica a realidade como ela é, porém a descreve de forma mística, chama a paixão de religião, o físico de metafísico, o conhecimento de fé/crença, a verdade filosófica-científica de mito, o humano de sobre-humano, o natural de sobrenatural; segue assim, cometendo um erro semelhante ao de Feuerbach exposto por Engels: 

“O verdadeiro idealismo de Feuerbach torna-se evidente assim que chegamos à sua filosofia da religião e da ética. Ele não deseja de forma alguma abolir a religião; ele quer aperfeiçoá-lo. A própria filosofia deve ser absorvida pela religião… O idealismo de Feuerbach consiste aqui nisto: ele não aceita simplesmente relações mútuas baseadas na inclinação recíproca entre seres humanos, como o amor sexual, a amizade, a compaixão, o auto-sacrifício, etc., como o que eles são em si mesmos – sem associá-los a nenhuma religião particular que, para ele, também pertence ao passado; mas, em vez disso, ele afirma que elas só atingirão o seu pleno valor quando forem consagradas pelo nome de “religião”. O principal para ele não é que essas relações puramente humanas existam, mas que sejam concebidas como a nova e verdadeira religião. Só terão pleno valor depois de terem sido marcados com um selo religioso.”

(Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã – Friedrich Engels, 1886)

Essa confusão foi algo comum a diversos filósofos russos do campo materialista, que são devidamente criticados por Plekhanov, que define a religião da seguinte forma: 

“No primeiro artigo afirmei que a religião é um sistema mais ou menos ordenado de ideias, sentimentos e ações, ou seja, um sistema mais ou menos livre de contradições. Além disso, eu disse que as ideias religiosas são de caráter animista . Tanto quanto sei, não há exceção a esta regra geral.”

(On the So-Called Religious Seekings in Russia – Georgi Plekhanov, 1909)

Essa definição se dá pela análise materialista da história, compreendendo como a religião foi formada e perpetuada; não se pode ignorar esses fundamentos para retaliar a religião e assim atribuir a ela um novo significado que quebra com o todo harmônico da filosofia marxista para afirmar que paixões são sentimentos religiosos e que o comunismo é uma religiosidade. Essa fantasia comum a diversos filósofos foi demolida por Plekhanov, em sua crítica a Anatoly Lunacharsky: 

“Ele se deixa levar pelas suas fantasias com a desculpa de seguir em frente e em nome do maior desenvolvimento das ideias fundamentais do marxismo. Mas, como já demonstrei, a sua atitude em relação à religião está em oposição directa à de Marx e Engels. Agora acrescentarei isto: ao cortar um traje religioso para o socialismo, ele está a retroceder como um lagostim, regressando à própria visão sobre a religião defendida pela vasta maioria dos socialistas utópicos. Tomemos o exemplo da França. Lá Saint-Simon e seus seguidores pregaram o ‘Novo Cristianismo’. Cabet inventou o “ verdadeiro cristianismo”. Fourier trovejou contra o espírito irreligioso das pessoas dos tempos modernos (“ espírito irréligieux des modernes ”). [154] Louis Blanc foi um defensor ferrenho do deísmo. Pierre Leroux ficou indignado com as pessoas que pensavam que a religião estava acabada (…)

(…) Quem não sabe como Wilhelm Weitling gostava de se envolver com religião? Qual marxista não se lembra das polêmicas de Marx com o profeta de uma “nova religião” Hermann Kriege, que foi morar em Nova York? Quem ainda não se lembra da caracterização humorística feita por Engels do profeta Albrecht (no início da década de 1840) e do profeta George Kuhlmann de Holstein”

(On the So-Called Religious Seekings in Russia – Georgi Plekhanov, 1909)

Tendo em mente o significado materialista de religião já exposto aqui, Plekhanov estende sua crítica a Gorky, dizendo:

“Finalmente – e isto é o mais importante – se ele tivesse digerido esta verdade, teria visto claramente que atualmente não há nem a necessidade teórica nem a prática de aquecer o velho erro de Feuerbach e colocar a marca da religião nas relações humanas, sobre sentimentos, humores e aspirações humanas nas quais não há absolutamente nada de religioso.”

(On the So-Called Religious Seekings in Russia – Georgi Plekhanov, 1909)

Como demonstrado anteriormente, Mariátegui renova esses velhos desvios com menos sofisticação e mais pragmatismo; ele identificou a realidade, ressignificou termos religiosos e atribuiu a essa realidade esses termos religiosos sem qualquer necessidade e conveniência para tal. A necessidade do uso de termos religiosos é algo que apenas existe para para os idealistas, que não se interessam em esclarecer as massas;

para eles basta corrigir tudo o que há de mais ruim na religião (o clericalismo, obscurantismo e reacionarismo) e se conciliar com a religião: 

“Diferentes ensinamentos idealistas diferem apenas em sua forma, justificam e “justificam” a religião. Encontramos nos idealistas aquela prova direta e lógica da correção dos princípios religiosos, a depreciação da razão e a exaltação da fé, do sentimento, do instinto, a delimitação das esferas de influência da ciência e da religião com o propósito de sua coexistência pacífica.”

(Dialectical Materialism – Institute of Philosophy of the Communist Academy, 1934)

Esta não é a conduta de Mariátegui, que foi um grande chefe comunista e consequente materialista-dialético. Portanto, não devemos ser tolos e dar continuidade a essa confusão terminológica que fez Mariátegui, a qual acaba por nublar a clareza de sua obra. Já podemos verificar que não houve continuidade dessa terminologia; não vemos nos escritos do Partido Comunista do Peru na chefatura do Presidente Gonzalo e nem em qualquer outro partido que dá continuidade legítima ao luminoso caminho de Mariátegui nenhum desses termos, a não ser é claro, a fé revolucionária, que é o correto núcleo da tese de Mariátegui nublada por tantos termos estranhos e confusos. O Presidente Gonzalo não deixa margem para nenhuma ressignificação dos termos religiosos e assim, repele as garras daqueles detratores revisionistas que se oportunizam de Mariátegui:

“Marx nos ensinou que “a religião é o ópio do povo”, é uma tese marxista que é plenamente válida hoje e continuará a ser verdadeira amanhã; que a religião é um fenômeno social

produto da exploração e que se extinguirá à medida que a exploração diminuir e uma nova sociedade emergente. São princípios que não podemos ignorar e que devemos ter sempre presente”

(Entrevista com el Presidente Gonzalo, 1989)

Aquelas garras que tentam fazer de Mariátegui um místico humanista, um advogado da “religião popular”, e não um consequente materialista ateu, estão esmagadas: 

“Finalmente, há outro conjunto de twisters, eles extraem ou cortam pequenas frases do trabalho de Mariátegui, então começam a fazer estranhas elaborações mentais, em algum lugar Mariátegui diz algo sobre religião, ele tem uma opinião sobre a religião e sobre o mito, mas depois alguns esfregam as mãos com alegria, suas mãos macias que nunca fizeram nenhum trabalho de campo, e dizem: no fundo Mariátegui era um místico e não um marxista, ele era um humanista que sofreu e sofreu pelo Peru.”

(Para Entender Mariátegui – Presidente Gonzalo, 1968)

Referências: 

(Para entender Mariátegui – Presidente Gonzalo, 1968)

https://www.novacultura.info/post/2021/09/14/para-entender-mariategui

(El Factor Religioso, José Carlos Mariátegui, 1928)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/7_ensayos/paginas/religioso.htm

(ABC do Comunismo, N.I. Bukharin and E. Preobrazhensky)

https://www.marxists.org/archive/bukharin/works/1920/abc/11.htm

(RESOLUTION OF THE THIRD ECCI PLENUM ON THE COMMUNIST ATTITUDE TO RELIGION, 1923 ) 

http://ciml.250x.com/archive/comintern/english/ecci_1923_june_23_resolution_on_attitude_to_religion.html

(La Mujer y la Politica – José Carlos Mariátegui, 1924)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/temas_de_educacion/paginas/la%20mujer%20y%20la%20politica.htm

(Heterodoxia de La Tradición, Jose Carlos Mariategui, 1927)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/peruanicemos_al_peru/paginas/hetero.htm

(As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo, 1913)

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm

(Materialismo Dialético – Academia de Ciências da URSS, 1954)

https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/materialismo/index.htm

(Once More on the Theory of Realisation – Vladimir Lenin, 1899)

https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1899/mar/struve.htm

(Sobre o Marxismo na Linguística – Josef Stalin,1950)

https://www.marxists.org/portugues/stalin/1950/06/20.htm

(El proceso a la literatura francesa contemporánea – José Carlos Mariátegui, 1929)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/defensa_del_marxismo/paginas/xv.htm

(La filosofía moderna y el Marxismo – José Carlos Mariátegui, 1929)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/defensa_del_marxismo/paginas/iv.htm

(O Marxismo é a Revolução na Filosofia – Andrei Zhdanov, 1947)

https://www.marxists.org/portugues/zhdanov/1947/mes/marxismo.htm

(Ética e Socialismo – Jose Carlos Mariátegui, 1929)

https://www.marxists.org/portugues/mariategui/ano/defesa/06.htm

(Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – Friedrich Engels, 1886)

https://www.marxists.org/portugues/marx/1886/mes/fim.htm

(El Idealismo Materialista – Jose Carlos Mariátegui, 1929) 

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/defensa_del_marxismo/paginas/xiii.htm

(Henri de man y la crises del marxismo – Jose Carlos Mariategui, 1929)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/defensa_del_marxismo/paginas/i.htm

(Henri Bergson – Georgi Plekhanov, 1909) 

https://www.marxists.org/archive/plekhanov/1909/bergson.htm

(The ideology of Fascism – Abram Deborin, 1936)

https://www.marxists.org/archive/deborin/1936/fascism.htm

(Compêndio de História da Filosofia – Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS)

https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/historia_filosofia/index.htm

(Movilizacion Anti-Sovietica – Jose Carlos Mariátegui, 1930)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/figuras_y_aspectos_de_la_vida_iii/paginas/movilizacion.htm

(La Agonía del Cristianismo de Don Miguel de Unamuno, José Carlos Mariátegui, 1926) 

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/signos_y_obras/paginas/la%20agonia%20del%20cristianismo.htm

(A Formação da Moral Comunista – Nikolai Ivanovich Boldyriev, 1951)

https://doceru.com/doc/cxv05vv

(On the So-Called Religious Seekings in Russia – Georgi Plekhanov, 1909)

https://www.marxists.org/archive/plekhanov/1909/religion/index.htm

(El Proceso de la Literatura – Jose Carlos Mariátegui, 1928) 

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/1928/7ensayos/07.htm

(La Emoción de Nuestro Tiempo – Jose Carlos Mariátegui, 1925)  

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/el_alma_matinal/paginas/dos%20concepciones%20de%20la%20vida.htm

(El Hombre y el Mito – Jose Carlos Mariátegui, 1925)

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/el_alma_matinal/paginas/el%20mito%20y%20el%20hombre.htm

(The Holy Family – Karl Marx e Friedrich Engels, 1844)

https://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/holy-family/ch06_3_d.htm

(Conspectus of Hegel’s Book Lectures On the History of Philosophy: Volume XIV. Volume II Of the History Of Philosophy – Vladimir Lenin 1915)

https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1915/cons-lect/ch03.htm

(Essência do Cristianismo – Ludwig Feuerbach, 1841) 

(De l’Esprit – Claude-Adrien Helvétius, 1758)

https://fr.wikisource.org/wiki/De_l%E2%80%99Esprit

(A Letter to A. M. Gorky – Vladimir Lenin, 1908) 

https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1908/feb/25.htm

(Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião – Vladimir Lenin, 1909)

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1909/05/26.htm

(Ghandi – Jose Carlos Mariátegui)  

https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/la_escena_contemporanea/paginas/gandhi.htm

(Entrevista com el Presidente Gonzalo, 1989)

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